quinta-feira, julho 08, 2010

O SISTEMA DO NADA

« MORIBUNDO: - Escuta... Criado pela natureza com gostos ardentes, com paixões fortíssimas, unicamente colocado neste mundo para a elas me entregar, para lhes dar satisfação, e sendo estes efeitos da minha criação meras necessidades relacionadas com os grandes objectivos da natureza ou, se preferires derivações essenciais dos seus prejectos a meu respeito, em total acordo com as suas leis, de uma só coisa eu estou arrependido: o não ter reconhecido devidamente o seu poder soberano (...).

PADRE: - Mas por certo haveis de admitir que existe alguma coisa depois desta vida, é impossível que o vosso espírito não se tenha alguma vez comprazido a penetrar na espessura das trevas da sorte que nos espera... E que sistema pode satisfazê-lo melhor do que um sem número de penas para aquele que vive mal e uma eternidade de recompensas para o que vive bem?

MORIBUNDO: - Qual, meu amigo? O do nada! Nunca me assustou, considero-o consolador e simples; todos os outro são obra do orgulho, só este é obra da razão. Além disso, não é repugnante nem absoluto, o nada. Não tenho eu diante dos olhos o exemplo da natureza que constantemente se vai gerando e regenerando ? Nada perece, meu amigo, nada neste mundo se destrói; homem hoje, amanhã verme, depois de amanhã mosca, não será tudo isso existir? Por que haverias tu de querer que eu receba recompensa por virtudes de que não tenho mérito algum ou castigo por crimes que não pude dominar? Poderás pôr de acordo a bondade do teu pretenso deus com este sistema, poderá ele ter desejado criar-me para ter o prazer de me punir, em consequência de uma opção que eu não sou senhor de tomar?

PADRE: És, sim.

MORIBUNDO: - De acordo com os teus preconceitos, sim; mas a razão derruba-os e o sistema da liberdade do homem foi por vós inventado somente para forjar o da graça, que tão favorável era aos vossos devaneios. Qual é o homem que, vendo a forca ao lado do crime, cometeria este se fosse livre de não o cometer? Somos arrastados por uma força irresistível, e nem por um instante somos senhores de escolher outra coisa senão aquela para a qual estamos inclinados. Não há uma só virtude que não seja necessária à natureza e, reversivelmente, não há crime de que ela não tenha necessidade, e é no perfeito equilíbrio por ela mantido entre uma coisa e outra que consiste toda a ciência; mas poderemos nós ser responsabilizados pelas inclinações que ela nos dá? Não mais do que a vespa que te espeta na pele o ferrão. (...) »

Aqui ficam alguns trechos do Diálogo Entre um Padre e um Moribundo, obra da primeira fase literária de Sade, ainda muito influenciada pelo naturalismo materialista de Helvetius, d’Holbach e La Mettrie (o título mais famoso deste último é todo um programa: L’Homme Machine...). Posteriormente, a Natureza deixa de aparecer-lhe dotada de uma espécie de Razão auto-regulada e providencial (à maneira do Logos estóico), para a qual concorrem tanto o bem como o mal, e o marquês parece mais inclinado a outra perspectiva: a Natureza cósmica como criação monstruosa de um Deus monstruoso, legitimando todo o mal que o homem é capaz de sentir e de fazer. Sem alternativa nem esperança de nenhum Deus bom, que não existe. (Rejeita-se, pois, a alternativa maniqueia.) É a apoteose do mal, e qualquer aparente bem concebível não passa de um mal insciente ou impotente. Mas, neste opúsculo juvenil, o autor ainda alega respeitos à “razão” e a uma lei moral, mesmo se é incongruente e, afinal, impotente diante as “paixões fortíssimas”. Temos, assim, as premissas existenciais suficientes para uma posição radicalmente contrária à de Kant.

Repare-se naquele “nada” oposto ao “sistema” de que fala o padre. Pretensamente referido a um pós-vida, afinal reverte e nadifica toda a existência vivida ante mortem, a começar pela liberdade. – Suponha o leitor que aceitamos a necessidade ou fatalidade com uma espécie de amor fati nietzscheano: não só aceitar o mal, como também querê-lo. Mas, se é uma fatalidade, por que deve ser querido o que de facto e de qualquer modo se tem? E porquê o que, querido ou não querido, de facto e de qualquer modo concluiria no “nada”? Nenhuma razão e nenhum motivo: nada. Mas suponhamos então que haveria alguma genuína liberdade de escolha. - O mesmo resultado: se, no fim, nada, porquê antes o mal do que o bem, ou o inverso ? Apenas meras conveniências tácticas de interesse pessoal, meu ou dos meus. Mas, neste caso, bem ou mal são apenas sinais do que favorece ou prejudica o interesse; e concluímos no mesmo nada: existiriam apenas interesses em concorrência. Aliás provisórios e sem mérito ou valor relativos nenhuns, porque tudo no final terminaria para todos no “nada”. Portanto, ou com a fatalidade ou com a liberdade, tudo remonta ao mesmo e tudo é no fim indiferente.

Foi por isso que o último Sade (ao que parece) e o alemão Nietzsche viram que, se há uma vontade que vale, o valor de o que quer não pode ficar totalmente confinado e esgotado na mera (e única) existência espacio-temporal do indivíduo. – A teoria do “eterno retorno”é consistente com uma vontade que “quer para a eternidade” o que quer. Neste caso, não se conclui no nada. Haveria então outra existência? Não exactamente outra. A “fidelidade à terra” do filósofo alemão (e a sua vontade de preservar os valores da “vida” incontaminados de qualquer vírus cristão), levá-lo-ia, como se sabe, a falar dum eterno retorno do mesmo : num tempo infinito, o conjunto de elementos finitos que forma (por acaso) um mundo, voltarão, com o tempo, a formar (por acaso) um mesmo mundo, com as mesmas leis e os mesmos acontecimentos e seres a elas submetidos. E assim eternamente. Portanto, não o “nada”, mas sempre mais do mesmo. Eis a prova suprema do amor fati por este mundo e esta vida. Mas, como é evidente, a mesma total indiferença perante o bem ou o mal (ambos retornam igualmente, de igual forma). Deste ponto de vista, Nietzsche colocava-se efectivamente “para além do bem e do mal”. Contudo, para o efeito, não era preciso tanta repetição de mundos: bastava, num único mundo, a repetição das gerações à lei do interesse amoral protagonista da história que contámos aqui, enquanto há combustível para alimentar a chama da “vida”.

Combustível é o que não falta no texto de Sade para alimentarmos outros postais.


[ Os trechos citados, com outras obras menores de Sade, encontram-se num livrinho titulado A Verdade (título de um poema de 1787), trad. port. de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, Lisboa, 1989. ]