sexta-feira, abril 30, 2010

INALIENÁVEIS DIREITOS HUMANOS

« Sustentamos como verdades de si evidentes que todos os homens são criaturas iguais; que a todos eles dotou o Criador de certos direitos inalienáveis (unalienable Rights), entre os quais o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. »

Assim escrevia Thomas Jefferson em Julho de 1776 na Declaração de Independência dos 13 estados norte-americanos que a subscreveram. No anterior mês de Junho a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia já falara em direitos inerentes (inherent Rights). Enfatizei as palavras que respondem a uma velha voz que começara a fazer-se ouvir já no clássico séc.V grego:

«... Pois somos por natureza iguais em tudo, tanto os Bárbaros como os Helenos. »

Isto dizia o retor ateniense Antifonte, no mesmo século em que outro sofista, Alcidamante, discípulo do mais conhecido Górgias, teria dito a extraordinária frase que um comentador de Aristóteles registou:

« Deus criou todos livres; a natureza não fez ninguém escravo. »

Antifonte e Alcidamante tocavam no mesmo diapasão por que ficaram e são inda hoje reconhecidos esses e outros coreutas do movimento da Sofística: uma diferença essencial, até à conjuntural oposição polémica, entre a natureza (physis) e as normas/convenções (nomos) da existêncial social e política humana.

Mas teriam de vir ainda alguns séculos e as contribuições decisivas do cinicismo e do estoicismo, para outra extraordinária voz se fazer ouvir: a de um judeu da Cilícia, perseguidor de cristãos e subitamente convertido ao Cristianismo, Paulo de Tarso:

« Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo. »

Temos aqui as duas fontes –greco-latina e hebraico-cristã – cujas misturadas águas fizeram germinar na Terra a árvore que mil novecentos e quarenta e oito anos depois frutificou na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No primeiro dos Considerandos com que abre esta Declaração encontramos o termo usado por Jefferson:

« Considerando que o reconhecimento da dignidade intrínseca a todos os membros da família humana e o da igualdade e inalienabilidade dos seus direitos são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.... »

E por isso que são direitos inalienáveis, o último Artigo (Artigo 30) tem o cuidado de estabelecer:

« Nenhuma disposição da presente Declaração pode interpretar-se como se conferisse algum direito ao Estado, a um grupo ou a uma pessoa para empreender e exercer actividades ou realizar actos tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nesta Declaração. »

Isto é racional e razoável: não é concebível invocar-se um qualquer direito humano para suprimir direitos humanos. E por isso que não é racionalmente legítima nenhuma disposição, objectiva ou subjectiva, moral, legal, social ou psicológica tendente à eliminação deles, - é (ou era...) doutrina consensual dos juristas a consideração dos “Direitos Fundamentais” como direitos “indisponíveis”. Podem ser legalmente ignorados, limitados, suspensos, proporcionados, mas não suprimíveis. Porque são inalienáveis. E por que não são alienáveis ? Respondia Antifonte 2 500 anos antes: porque somos assim por natureza. E, 2 500 anos depois, o Artigo 1º da Declaração: « Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.... »
( Ecoando a Declaração dos Direitos francesa de 1789: « Artigo 2º. Os homens nascem livres e iguais em direitos.... » )

Implica-se aqui o que na síntese tomista medieval foi contemplado e definitivamente fixado com as expressões “Direito Natural” e “Lei Natural”. Trata-se, como é de ver, não de nascimento e natureza biológicos (nascemos carentes, dependentes, desiguais), mas de uma natureza moral e do valor - da dignidade - desta. Por isso apela-se no Preâmbulo da Declaração ao “ensino” e à “educação” para o “reconhecimento e aplicação universais e efectivos” dos Direitos Humanos.

Portanto, se são inalienáveis, como é que podem ser "renunciáveis"? Ora têm aparecido alguns juristas aos quais isso parece não só concebível como justificável. E tal concepção divulga-se já em livros de “Bioética”:

« Uma vez que o interesse sujacente ao reconhecimento do direito à vida é essencialmente pessoal, parece-nos que não é de excluir a possibilidade de renúncia, ainda que se trate de renúncia à titularidade do direito. Ao contrário do que entende alguma doutrina, não nos parece evidente que o direito à vida é indisponível. »

Isto diz a professora de Direito na Universidade do Minho Benedita MacCrorie, no seu ensaio “A Doutrina da Renúncia a Direitos Fundamentais: os Casos da Eutanásia e da Colheita de Órgãos em Vida”, integrado na colectânea Pessoas Transparentes. Questões Actuais de Bioética, há poucas semanas publicada em Coimbra. Então haverá deveras um legítimo “interesse essencialmente pessoal” para “renunciar” a Direitos que são inalienáveis e que pareciam do essencial interesse de todas e cada uma das pessoas humanas?

Tentaremos nós ver melhor o que já não parece evidente à senhora professora.