quinta-feira, outubro 01, 2009

O SISTEMA POLÍTICO PORTUGUÊS : VIDEOCRACIA E CLAUSTROFOBIA


« O sistema político português está bloqueado e uma larga maioria de cidadãos deixou de se reconhecer nos partidos políticos existentes, que funcionam de forma oligárquica e sonegaram a soberania popular, que lhes é delegada pelo voto e que deveriam representar. Este diagnóstico é a conclusão que ressalta da obra O Povo Semi-Soberano. Partidos Políticos e Recrutamento Parlamentar em Portugal, que identifica e analisa as especificidades portuguesas da crise dos sistemas políticos representativos. »

A pessoa que cita é a jornalista São José Almeida que, em Junho passado, num jornal diário, dedicou duas páginas à apresentação da obra citada e das opiniões credenciadas da respectiva autora: trata-se da Dra. Maria da Conceição Pequito Teixeira e da sua tese de doutoramento em Ciência Política, recentemente publicada. Eu ainda não li o livro, mas o que li no jornal pareceu-me importante e oportuno, tanto mais que no arraial eleitoral destas últimas semanas ouviu-se falar não poucas vezes numa (ambiguamente chamada) “asfixia democrática”. Não só oportuno mas útil, porque a novel doutora não se limita a fazer diagnósticos: adianta propostas concretas para “desbloquear” o sistema. Que a situação deste é preocupante, todos os ciadadãos menos distraídos da vida pública sabem-no já e está plenamente estampado no título da obra, como bem reparou o leitor: - Então “o povo” já é só “semi-soberano”? – Então a República portuguesa não é um estado “baseado na soberania popular” e que se propõe o “aprofundamento da democracia representativa”, como se lê logo no artigo 2º da nossa Constituição política? Responda quem sabe:

« Vivemos uma democracia de audiência, feita de comunicação social, sondagens e líderes, em que há uma espécie de sondocracia, de videocracia e de liderocracia, resume Conceição Pequito, explicando as novas condições em que é exercida a política: As sondagens funcionam como um escrutínio permanente ao eleitorado e é desse escrutínio que saem as ofertas políticas que os partidos direccionam, como produtos no mercado, para rendibilizar votos. Depois, há a questão da videocracia, como o peso da comunicação social, que personaliza, por sua vez, os líderes. Tudo isto se vai afunilando, até que torna a sociedade civil claustrofóbica. (…) Conceição Pequito considera que é preocupante que o sistema político português esteja a dar saltos qualitativos para limitações do sistema democrático consolidado, mas em fase precoce. » ( Aqui e no que segue, para não multiplicar as aspas, os trechos que a jornalista refere à professora dou-os sempre em itálico. )

Consolidado o sistema constitucional há 33 anos, no entanto “ a componente participativa só começa a existir com a introdução do referendo na Constituição em 1997”. Sob este ponto estaríamos ainda na tal “fase precoce”, e que não tem corrido bem, dada a muito alta taxa de abstenção nos referendos.Quanto aos partidos, « com excepção do PCP, activo desde 1921, os partidos foram criados de cima para baixo; não nasceram para dar voz a grupos ou classes sociais pré-existentes, para politizar clivagens que existem na sociedade, (e que) são na sociedade uma espécie de correia de transmissão do tecido social”. Ao invés, em Portugal « os partidos são autores e actores da democracia, todo o sistema é feito pelos partidos, vão para o Governo, vão para o Parlamento, vão para o Poder Local e só depois de instalados na esfera institucional, vão à procura da representação popular». Casos típicos são os dois maiores partidos existentes. « o PS e o PSD nasceram já como partidos de eleitores que pretendem o acesso ao poder, fazendo-o com a conquista do voto e através dum apelo transversal, procurando não estar muito à esquerda, não estar muito à direita, estar no centro. Daí falar-se de um bloco central de interesses, quando se fala da partilha dos despojos do poder político entre o PS e o PSD, o que, ao nível da sociedade, teve um efeito perverso, que foi situar o eleitorado muito ao centro, o eleitorado moderado que está mais disponível para um discurso mais ambíguo, mais definido por factores de curto prazo, como sejam a situação económica, o desempenho do Governo, o apelo carismático do líder. »

Mas não só. Estes partidos foram também criados « em torno das figuras dos líderes e cada saída de um líder dá quase uma crise de sucessão e de perda de eleitorado e de descaracterização, o que mostra a fragilidade, como os partidos acabam por ser quase sinónimos de líderes conjunturais e não instituições com implantação social e ideológica sólida.» E por aqui temos como o sistema partidário se volve numa liderocracia. « Além disso, os partidos portugueses nascem em época mediática e a mediatização da política junta-se à personalização, são fenómenos que se alimentam mutuamente. E Conceição Pequito pergunta: Quando o que interessa é o líder e os dirigentes de topo e o palco é a TV, os partidos servem para quê?» Boa perginta. A resposta terá parcialmente a ver (digo eu) com o último e sequente factor causal da situação : o funcionalismo público partidarizado: « Há um clientelismo partidário e estatal que dá a possibilidade de colocar pessoal no aparelho de Estado, afirma Conceição Pequito, acrescentando que Portugal não é como a Inglaterra, que tem um serviço público autónomo da classe política. »

Depois da etiologia, a terapêutica. As medidas que a profª Pequito propõe configuram uma reforma “que tem de começar pelos partidos, depois pelo sistema eleitoral, e finalmente pelo governo.” De acordo com a resenha do jornal, teríamos mais concretamente: (1) Eleições primárias internas nos partidos para todos os cargos electivos, devolvendo a iniciativa aos militantes e não aos directórios nacionais; no entanto, no sentido de combater a fulanização liderocrática, as chefias dos partidos deveriam ser eleitas em congressos e não por eleição directa. (2) Promover os debates ideológicos e referendos internos sobre questões programáticas. (3) Reforma do sistema eleitoral, com manutenção do sistema proporcional, mas adoptando listas plurinominais abertas, em que o elitor escolhe o partido e, se quiser, o seu candidato. (4) Parlamentarização do sistema de governo, contra a tendência da evolução deste para um presidencialismo de primeiro-ministro, com aumento das competências e poderes de efectiva fiscalização do governo pelo parlamento. (Presume-se que independentemente dos acasos da aritmética eleitoral.)

Tais as medidas mencionadas na resenha do jornal, e com as quais se pretenderia “aliciar a sociedade civil” para uma maior participação na vida política. Como não li o livro, não as comentarei mais de espaço. Apenas direi o seguinte. – Abstraindo da palavra “aliciar”, que tresanda a marketing, pergunto-me se estas medidas, e só estas, conseguiriam tal desiderato, quando a sua mesma efectivação é duvidosa. Por exemplo, há muito que se fala da reforma do sistema eleitoral. Só nos últimos dois anos, tenho notícia de cinco estudos especializados com propostas concretas para alterar um sistema que, no dizer de um dos proponentes (o prof. Trigo Pereira, do ISEG), “é um dos menos democráticos da Europa”. Sucede até que um destes estudos foi encomendado por um dos dois grandes partidos do sistema, e saiu publicado em Novembro de 2008. Ora, o que é que aconteceu? O governo ligado a esse partido aprovou, em Dezembro de 2008, uma proposta de alteração da lei eleitoral, cuja grande medida é… acabar com o voto por correspondência dos emigrantes! (Precisamente na mesma altura em que, por toda a parte, o governo vinha reduzindo o número de consulados… A proposta foi vetada pelo presidente da República em Fevereiro deste ano.) Portanto, se “começar pelos partidos”, como diz a autora, significa essencialmente começar com a iniciativa dos partidos, parece-me ingenuidade. Esperar que os dois maiores partidos fossem mudar alguma coisa num sistema que monopolizam e de que beneficiam completamente, só se fosse para abafar de todo os partidos mais pequenos (como aliás já intentaram). Por outro lado é menosprezar o que – de facto – são hoje estes dois partidos ditos “políticos”: não passam de agências de promoção e ocupação de posições de influência económico-social para os carreiristas ou oportunistas ao serviço de interesses particulares das suas clientelas de apoiantes ( “companheiros” ou “irmãos”…).

As medidas apresentadas pela novel doutora em Ciência Política assentam num princípio para ela axiomático: “institucionalmente não há democracia sem partidos.” Este chavão ouve-se muitas vezes, mas, sobre ser historicamente falso, mesmo para a época moderna e contemporânea (lembre-se a administração de George Washington e as primeiras legislaturas do Congresso norte-americano; e veja-se também: http://en.wikipedia.org/wiki/Nonpartisan_system ), não é nenhum axioma, mas sim uma tese discutível que, entretanto, serve muitíssimo bem os interesses…dos partidos. Mas deixemos isto e perguntemos antes: - e não será que se pode dar o caso de termos hoje partidos e uma situação em que o povo “semi-soberano” já não tem de facto soberania nenhuma?