domingo, junho 29, 2008

A esquerda, pá!

Para assinalar o meu despousio vou transcrever (tenho usado mais acertadamente o verbo roubar), de Novembro de 2000, um texto de autor contemporâneo que, para não variar, não vou identificar para não facilitar que me processe.
“Preocupados com o passado, o presente e o futuro da agricultura, reuniram-se num colóquio em Mértola Cláudio Torres (apoiante do Bloco de Esquerda e da CDU), Constantino Piçarra (apoiante só do Bloco de Esquerda) e um ex-ministro da Agricultura, considerado próximo só do PCP. O encontro foi anunciado há semanas em Castro Verde por Fernando Rosas, candidato bloquista à Presidência, mas na realidade foi organizado pelo Campo Arqueológico de Mértola, dirigido por Cláudio Torres, mandatário nacional de Rosas. Ou seja, o Bloco Agrícola de Mértola anda a realizar, empenhadamente, iniciativas no domínio da arqueologia de esquerda. Que escrevo eu? Há qualquer coisa que não soa bem aqui. Re-escrevamos: o Campo Arqueológico de Esquerda promoveu, no passado dia 4, e em conjunto com o Bloco de Mértola, um colóquio sobre Agricultura. Não, bolas, também não foi assim. Quem promoveu o encontro foi o Bloco Arqueológico de Mértola em conjunto com o Campo de Esquerda. Também não. Acho que me enganei outra vez… O colóquio foi uma iniciativa da Esquerda Arqueológica no Campo com a colaboração de Mértola em Bloco. Se calhar também não foi exactamente isso. Vamos então tentar de novo. Realizou-se recentemente um encontro promovido pelo Bloco do Campo Agrícola em conjunto com alguns elementos da Esquerda Arqueológica. Não, caramba, enganei-me outra vez. Até parece mentira! Vamos à última tentativa: a Agricultura Arqueológica da Esquerda conspirou recentemente com membros do Campo de Mértola. Bem, desisto. Fiquemos por aqui.
No fundo, acho que toda a gente percebeu. Foi uma iniciativa gira, pá. Isso é que interessa. Foi assim uma coisa de esquerda, pá. Da esquerda caviar mais da esquerda tractorista. Da esquerda folclórica e da esquerda descontraída. Da esquerda de camisa aos quadrados à esquerda da boina guevarista. Da esquerda mais ou menos animada à esquerda mais ou menos coerente. No fundo, não interessa muito se foi o Bloco de Mértola, a Arqueologia Agrícola ou o Campo da Esquerda quem organizou a iniciativa. No fundo, o importante é a esquerda. A esquerda , pá."

"Coimbra, 29 de Junho de 1988"

«Portugal. Foi a procurar entendê-lo que compreendi alguma coisa de mim. As pátrias são espelhos gigantescos onde se reflecte a pequenez dos filhos. À nossa medida, herdamos-lhes a dimensão. E a singularidade. Todos os Alcáceres Quibir e todas as Aljubarrotas estão em mim. Descobri mundos e ando repartido por eles. Tenho também oitocentos anos de idade e pareço uma criança.»

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

quarta-feira, junho 25, 2008

PESSOAS EM PORTUGAL




À sombra dum toldo no convés do navio em que embarcara, por Junho de 1754, as primeiras terras que o escritor inglês Henry Fielding avistou de Portugal foram as Berlengas. Era a porta de entrada desse grande cemitério de navios que ficava entre o Carvoeiro e o Baleal. Mas o dia estava de sol aberto, com boa visibilidade, o mar banzeiro e a nortada branda: para o velho Fielding, gotoso, hidrópico, asmático – o esquife era o seu próprio navio. Com o florete da ironia e artilharia de vasta erudição, ia tentando enredar a pescadora morte. Morreria, sim, mas só em terra, pouco após desembarcar, com bonomia na alma e as armas que ele escolhera para si nas mãos. Um tal, que deixou os ossos na nossa terra, merece que voltemos a falar dele.

Pois à vista do forte da Berlenga Grande, ia o inglês discreteando sobre a notícia que tinha do respectivo forte estar provido duma guarnição de presidiários, e logo citava da Antiguidade exemplificações eruditas de semelhante prática, que o ex-magistrado da polícia londrina avaliava com interesse profissional. Não saberia, no entanto, que os primeiros moradores da ilha eram bem diferentes e, se não eram bem náufragos, eram outra espécie de salvados: monges eremitas de S. Jerónimo, que em 1513 aqui tinham posto pé e pedra. Procuravam edificar moradia de mais robusta alma, e resistiram por cinquenta e sete anos. Falta de água potável? Dureza extrema do clima? Pergunta bem o leitor sensato, porém mal advertido da bruta insensatez dos homens que lhe responde assim: - Nada disso; foram os assaltos e roubos dos piratas. Os berberescos e os compatriotas de mr. Fielding não se contentavam com roubar os poucos mantimentos e pobres alfaias dos monges: levavam-nos para os vender como escravos no norte de África. E nem o forte que D. João III mandara começar a construir os detinha.

Portanto, ficamos a saber que no Portugal do séc. XVI já havia monges que não conseguiam encontrar sossego. Lembre-se disso o leitor do séc. XXII quando, com esquivas astúcias de lince da Malcata, quiser escapar aos 90% de população amontoada nos 30 kms de faixa litorânea. Já fica advertido de duas coisas: primeira, que os homens bons dos bons conselhos que restarem não poderão mais contar no deserto interior com fortalezas construídas por reis que serão piratas da pior casta, e terá de se haver lá com eles quem tiver a veleidade de fugir à escravatura; segunda, que se o januário escritor destas linhas tem andado por aqui a mirar e remirar o passado, isso é porque tem dois olhos bem abertos para o futuro. Nem é preciso advertir uma terceira: impossível um novo refúgio nas Berlengas, que já terão soçobrado ao peso das miríades de turistas, ecologistas e… gaivotas. Isto posto, tornemos ao conto.

Com o abandono dos monges abandonou-se a fortaleza, que só depois D João IV mandaria reparar, no contexto da Guerra da Restauração. Um caso sucedido já no reinado de seu filho, D. Afonso VI, demonstraria a previdência do rei Restaurador. Estávamos no ano de 1666 quando se deu isto, que terá “passado despercebido” ao grande António Vieira, então preso em Coimbra, que mais temia dos portentosos acontecimentos que aguardava para esse ano que dos longos, miudinhos e moedores inquéritos a que a Inquisição o trazia sujeito. Enquanto o grande visionário esguardava encobertos poderes e descobertos cometas e seus efeitos, os grandes senhores viam no casamento do rei D. Afonso VI com D. Maria Francisca de Sabóia, filha do conde de Nemours,mais uma oportunidade de sustentar a independência portuguesa. Ajustado o casamento no ano anterior, saía o séquito da princesa de La Rochelle por mar a Portugal. Mas eis que de Cádis sai também uma armada castelhana ao encontro dela, para lhe embargar o desembarque e as núpcias. No dia 27 de Junho de 1666 estão e pairam ao largo das Berlengas catorze naus e uma caravela, capitaneadas por D. Fernando Ibarra. Estão à vista do forte e do olhar do cabo António Avelar, com 28 soldados e 9 peças de artilharia espreitando das muralhas. Ou porque o soberbo castelhano não lhe sofre o olhar, ou para entreter a espera e afinar a pontaria, ei-lo mandando desfilar as naus e dar bordada sobre bordada no forte. Respondem os nossos com a voz uníssona e bem ritmada dos poucos canhões. E respondemos durante três dias inteiros, até que a falta de pólvora e pelouros nos impediu de continuar a festejar os castelhanos. Desembarcaram estes umas centenas para submeterem o que restava dos nossos, já submetidos pelo desânimo de verem o seu cabo deitado sobre os mortos, gravemente ferido. Não conseguiram os castelhanos arrasar as grossas muralhas de 22 metros de altura, como pretendiam, contentando-se com levar as 9 peças que lhes afundaram uma nau e forçaram outras duas a retirar para Cádis a reparações, que se afundaram no caminho. Do forte comandante da fortaleza, que, já ferido, não teve forças para se opor a ir morrer a bordo duma nau castelhana, o último nome não era Avelar, como disse. O último nome dele quero lembrá-lo a outro grande visionário que, como vimos há duas semanas, também gostava de esguardar bandarras profecias e sinais nas estrelas. - Hoje, quando o pacífico turista vai de folgança até às Berlengas a enxotar gaivotas, se repara no nome do maior barco disponível, eis o que lê: “Cabo António Avelar Pessoa”. E não será o primeiro a perguntar se o nome era dalgum avoengo daquela pessoa que gostava de encontrar em certas datas “acontecimentos despercebidos”, e que também foi um jovem pintor de brasões que blasonava de pintar “Pereiras” e “Sousas” antigos como antepassados…

E não me esqueça lembrar-lhe outro – André Pessoa -, capitão duma nau que, na primeira metade deste XVII, naufragou na carreira da Índia, porque quero acabar o postal com outro naufrágio e na companhia de mais estas pessoas da melhor nobreza que há: José Olhinha; Joaquim Cativo; Teodoro Gomes; Joaquim Combóio; Pedro Pescador, Lúcio Freitas; Veríssimo Guitarra. Infelizmente, não consegui saber os outros dois nomes que faltam dos heróicos pescadores que se lançaram ao mar, com espias amarradas à cintura, para tentarem salvar, na madrugada de 20 de Dezembro de 1943, os tripulantes dum navio que o nevoeiro e as vagas tinham encalhado nos rochedos do Baleal, a cem metros da praia. Consegui saber que era um navio espanhol, e fixei-lhe o nome: Fernando Ibarra


[ Vai um quadro do holandês Hendrick Cornelisz Vroom (1566-1640), que em 1590 naufragou na Berlenga, que os jerónimos já tinham abandonado. Salvaram-se todos apenas com a roupa que traziam vestida. Entre os restos da carga que foram dar à costa estavam “alguns dos quadros religiosos mais belos” de Vroom; foram estes que chamaram a atenção dos frades do convento do Bom Jesus, de Peniche, à beira-mar. Olhando para as Berlengas conseguiram divisar a grande bandeira que os náufragos tinham feito com as roupas. Quando foram resgatados da prisão do mar e da fome nua e crua, já se aprestavam a lançar sortes sobre qual deles seria o primeiro a matar a fome dos outros...]

terça-feira, junho 24, 2008

“Coimbra, 24 de Junho de 1947”

« (…) Acabar com a ideia de morte. Integrarmo-nos na natureza, para que, aos horrores das penas temporais, não juntemos ainda o castigo das eternas. O homem é, ao cabo e ao resto, um animal. Sofra, pois, como animal, e não como deus. »

[ Contudo, parece que “acabar com a ideia” não foi possível: lembrar isto aqui. ]

Miguel Torga, Diário, Vol. IV.

sábado, junho 21, 2008

O RISO DE DEMÓCRITO AFOGADO NAS LÁGRIMAS DE HERACLITO



Estava o nosso padre António Vieira em Roma havia cinco anos, já pregador famoso na língua italiana como era na portuguesa, quando, em 1674, no palácio da ex-rainha Cristina da Suécia, de quem Vieira era confessor, e com a assistência de muitos cardeais e monsenhores, se propôs a debate o seguinte problema: qual dos dois filósofos fora o mais sábio, se Demócrito, que sempre ria; ou se Heraclito, que sempre chorava. Foram chamados a debater tão candente problema os dois campeões vivos da oratória sacra: o nosso jesuíta, que fez questão de conceder ao opositor a parte que quisesse defender; o outro, da mesma Companhia, era Jerónimo Cataneo, que tomou partido por Demócrito, não sabemos se rindo do cavalheiroso gesto do confrade. Também nos não chegou directa notícia de quem na ocasião recolheu mais sufrágios de vencedor, por mais ter convencido. Sabe-se que o Geral dos jesuítas, João Paulo Oliva, enviava no dia 13 de Março de 1675 uma carta a Vieira em que, a propósito do panegírico de Santo Estanislau, pregado pelo nosso no dia anterior, dizia isto do que nos importa agora: « Este Panegírico de V. Reverência não cede a outro algum dos seus discursos, exceptuando o das Lágrimas, em que V. Reverência venceu não só todos seus companheiros, mas também a si mesmo, impossibilitando-se de sair à luz com outro parto igual.»

Não há encarecimento lisonjeador. Não precisava dele um orador capaz de demonstrar, no mesmo parágrafo, que Demócrito “não ria”; que “ria sempre, logo nunca ria”… Recolhamos algumas lágrimas do discurso prodigioso:

« (…) Entrando pois na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto; e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heraclito; eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma cousa e direi outra. Confesso que a primeira parte do racional é o poder rir; e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.

« Que é este mundo senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também podem rir as feras. (…)

« Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas cousas que via e chorava Heraclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um ao seu modo.

« Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre; logo, nunca ria. A sequência parece difícil, mas é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração; e cessando a novidade e a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria, pois não havia matéria que motivasse o riso.

« Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma cousa que visse ou encontrasse de novo; porque sempre e em todo o lugar se ria, e quando saía de casa já saía rindo; logo ria do que já sabia, logo ria sem novidade nem admiração; logo o que nele parecia riso não era riso. Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito; porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o de que Demócrito se ria não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo não se ria; e, se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam riso ? Já disse que era pranto e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora vede.

« Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso. Chorar com lágrimas, é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. (…)

« A ironia tem contrária significação do que soa: o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido da tristeza, e também a significava: eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas (…).

« Heraclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca. O pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz, e este era o pranto de Demócrito. De sorte que na minha consideração, não só Heraclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença de que o pranto de Heraclito era mais natural, o pranto de Demócrito era mais esquisito; e tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastante chorado. Mas porque esta minha suposição me separa do problema e pode parecer que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade, seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam em juízo um e outro filósofo para que, ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa que será tão justa a sentença que Demócrito saia chorando e Heraclito rindo.

« Séneca, no livro De Tranquilitate, falando destes dois filósofos, dá a razão por que sempre ria um e chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic, quoties in publicum processerat, flebat, ille ridedat; huic omnia, quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur. Demócrito ria porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias; logo maior razão tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir, porque neste mundo há mais misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria. (…)

« E como nem todas as misérias são ignorâncias e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e muito maior razão tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir; antes digo que só Heraclito tinha toda a razão e Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas eram o assunto de Heraclito, e o de Demócrito só uma parte delas; e como toda a miséria é causa da dor e nenhuma dor pode ser causa de riso, o riso de Demócrito não tinha causa nem motivo algum que o justificasse. (…)

«E se o fim destes dois filósofos (como verdadeiramente era) foi manifestar ao mundo o desconcerto de seu estado e persuadir aos homens o erros dos seus juízos, a desordem dos seus desejos e a vaidade das suas fadigas, também para este fim tinha muito maior razão Heraclito de chorar que Demócrito de rir. (…)

« Finalmente, Demócrito ria sempre, e Heraclito sempre chorava; este sempre também era parte de Heraclito e contra Demócrito: por parte de Heraclito, porque era o seu pranto mais eficaz; contra Demócrito, porque ser o seu riso contínuo o fazia ridículo. (…) Tal era a eficácia invencível do pranto de Heraclito e tal a debilidade ridícula do riso de Demócrito. (…) »

Tal a eficácia dum discurso que, se o opositor Cataneo antes se decidira pelo pranto, nos deixa a certeza de que seria na mesma invencível! Pois se a “primeira e final parte do racional” é o riso, e se tal orador avança de si capaz de “confessar uma coisa e dizer outra”… E tais os tempos felizes em que o mundo não estava tão desconcertado que não tivesse rainhas sábias como Cristina, renunciando soberanamente à vacuidade do poder político; ou cardeais e monsenhores que se distraíam dos fadigosos trabalhos do governo da Igreja universal com inocentes quanto eruditos torneios oratórios. Mas hoje, o “teatro imenso” está de tal maneira “trágico, funesto, lamentável”, que o pranto de Heraclito pranteado por Vieira é capaz de soltar a muitos, se não uma gargalhada demócrita, algum leve e cínico sorriso… E, no futuro, se dirá de hoje que o mundo não estava tão desconcertado que hoje achasse algum sábio que não tivesse renunciado ao poder político; e muita gente bem-disposta capaz de soltar, se não uma gargalhada… Assim o discurso engenhoso se “venceu a si mesmo” e deixa vencedor aquele bom senso comum sabedor que – no fim, ou seja in dies ille, ou seja in aeternum, sempre há-de ser toante com a “parte final” do racional – o último a rir é quem rirá melhor ! Será Demócrito, que nem “sempre ria”, como vimos aqui? Será o nosso patrono Diógenes, que sempre ria quando não se podia lavar duas vezes nas mesmas águas do rio, dizendo que assim ficava mais bem lavado?...

Não sei. Só sei que eu confesso uma coisa e digo a mesma: Jesus Cristo, no livro da Boa Nova, dá a razão por que sempre riem melhor os últimos, com as judiciosas palavras dum divino Juízo: «Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. (…) Alegrai-vos por aquele dia e exultai...»



[ Na imagem, Heraclito, que não parece lá muito choroso, e o polido sorriso de Demócrito mostram que o sóbrio classicismo de Donato Bramante (1444-1514) não dava para passionadas emoções. Mas não arranjei nada melhor. ]

sexta-feira, junho 20, 2008

“Coimbra, 20 de Junho de 1975”

« Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. (…) »

Miguel Torga, Diário, vol. XII

terça-feira, junho 17, 2008

HERMETO PASCOAL

Hermeto (Diógenes) Pascoal é uma das melhores homenagens que eu podia encontrar e quero dedicar aos amigos brasileiros que têm passado por aqui a beber do Tonel…

Ele toca tudo, desde pelo de barba a casca de gerimu (ou “gerimum” como preferis dizer aí no Brasil), e tudo onde toca transforma-se em música. Não há dúvida, um país que tem músicos destes – irá tocar longe.

Para todos vocês, um grande Saravá e batucadê Anauê!

Ou, como ele gosta de dizer: - “Tudo de bom sempre!”

sexta-feira, junho 13, 2008

PORTUGAL EM PESSOA



«Quando ele nasceu, nascemos todos nós.»
“Para a Memória de António Nobre”, in A Galera, 1915.




A “primeira poesia” terá sido esta quadra dedicada “à minha querida mamã”:

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci.
Por muito que goste d’ellas
Ainda gosto mais de ti.


É uma quadra “ao gosto popular” que, no espólio, está assinada e datada de “26-7-95”.

Nos dois primeiros versos, eu sempre ouvi a voz duma Distância, como se o Poeta, então com 7 anos de idade, viesse de torna-viagem e estivesse afastado de sua mãe. Mas, à data, ele estava com a mãe nas terras em que nasceu. Só em Janeiro de 96 partiriam para a África do Sul. A Distância, a viagem de que tornava, podiam ser outras...

Cinco anos depois, em Agosto de 1901, toda a família voltou para uma curta estada em Portugal.Vinha com eles no barco o cadáver da sua irmãzinha, que partira antes dos três anos de idade. Em Maio de 1902, vão aos Açores visitar a família materna e, no mês seguinte, o padrasto e a mãe regressam a Durban. O Poeta, só em Setembro se lhes irá juntar. Julho de 1895 será, pois, Julho de 1902, próximo do Maio anterior em que escrevera o poema Quando Ela Passa ? Este, quase de certeza dedicado à irmã morta, faz parte de um conjunto de quinze poemas, escritos entre Março e Agosto deste ano de 1902, entre os quais a linda paráfrase em verso da “Avè Maria”, que o católico menino das freiras irlandesas de Durban dedicou também a sua mãe. A letra que escreveu e assinou aquela quadra não é a de um menino de 14 anos, e que nesta idade se assinava “F. Nogueira Pessôa” : é a letra de sua mãe, que conservou a quadra entre os seus papéis pessoais, e assinou-a com o nome por que viria a ser conhecido do mundo.
Em 1905, dez anos depois, regressaria definitivamente “às terras onde eu nasci”. Vem sozinho. Tenciona matricular-se no Curso Superior de Letras, em Filosofia. Quem já andava a tentar escrever romances em inglês e se dispunha a continuar a escrever só nessa língua; quem andava já por essa altura embrenhado em estudos filosóficos, multiplicava fragmentos escritos sem data, como este que o compilador Pina Coelho atribui ao ano de “1906”: « My first action was to require of myself whether man’s perpetual failure in the grounds of higher thought was due to want of reasoning power, or to an ill of his reasoning. (…)» Quem, aos 18 anos de idade, anda nestes “grounds of higher thought”, ainda que sozinho, “regressado às terras onde nasci”, decerto não é já o menino autor da quadra “à minha mamã”. E só em 1908 recomeçaria a escrever em português.

Nas notas coligidas por Armando Cortes Rodrigues em 1914 - “baseadas em dados fornecidos pelo próprio poeta” -, lê-se isto:

« Quadra feita por Fernando Pessoa aos 5 anos de idade e dirigida à mãe:
 
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
»

Portanto, em 1914, os 5 anos de idade dão 1893 e dois versos diferentes numa quadra que o modernista não se pejava de recordar ao companheiro de Orpheu. Aliás, nesta versão, uma quadra de maior “sabor popular”: nem o menino de 5/7 anos nem o povo-menino diriam “eis-me”…

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci





- Que voz singular é esta que, estando em Portugal, fala como se tivesse de volta, Regressado?

O leitor está lembrado de que no “horóscopo de Portugal” levantado pelo Poeta ( e onde se encontra escrita a subtracção: “1914-19 = 1895”…), a última data indicada é 1978. É o mesmo ano em que foi registado o “copyright” da obra em que Joel Serrão introduzia e organizava uma colecção de fragmentos Sobre Portugal, saídos da fabulosa arca do nosso tesouro: da fazenda e alimentos que nos têm mantido desde 1935. (E só de pensar que na “certidão de óbito” está escrito que “não deixou bens” e “não fez testamento”… Que grande riso demócrito!...) Impressa e saída em 1979, foi nessa obra que apareceu publicado um fragmento que era o de uma carta para a qual o Poeta pede a uma incógnita “V. Exª a fineza da publicação”. É um fragmento que tem escrito e sublinhado isto:

« No Terceiro Corpo das suas Profecias, o Bandarra anuncia o regresso de D. Sebastião (pouco importa agora o que ele entende por “regresso”) para um dos anos entre 1878 e 1888. Ora neste último ano (1888) deu-se em Portugal o acontecimento mais importante da sua vida nacional desde as Descobertas; contudo, pela própria natureza do acontecimento, ele passou e tinha de passar inteiramente despercebido.»

O que não passou inteiramente despercebido não foi decerto a publicação dos Maias. Terá sido a publicação, por Alberto Pimentel, de um documento “que inculca D. Sebastião como enamorado de D. Juliana de Lancastre, filha do Duque de Aveiro” ?... O Poeta não fazia por menos: “o mais importante desde as Descobertas”…E, por que não?... Nestes oceanos muito mais vastos e perigosos em que navegamos agora à catrina, no meio duma completa Cerração, o leitor é capaz de ver e nos dar a ver bem que não? O que eu vejo é que o mesmo fragmento, datável de 1928, contém ele mesmo uma “profecia”:

« Mas não que antes de uns dez anos, a contar de agora [1928], o povo português venha a perceber do que se trata e da importância do caso.» E vemos bem que, “antes de dez anos”, dar-nos-ia um livro que o Poeta desejou saísse com o seu verdadeiro nome – Portugal.

O leitor dará a importância que entender ao anúncio de um acontecimento que não passou inteiramente despercebido para um dos anos entre 1968 e 1978. Mas há-de lembrar que este último (1978), como aparecia no “Horóscopo de Portugal”, não é a data derradeira. Nas notas manuscritas à margem das « trovas mui inteiras, / Versos bem medidos, / Que hão-de vir a ser cumpridos / Lá nas eras derradeiras » - feitas por um sapateiro-poeta do povo que calçou gente capaz de ir longe como D. João de Castro, António Vieira ou Agostinho da Silva – o Poeta foi até aonde? Pois foi até apor à margem da quadra XI do “Sonho Segundo” do “Corpo Terceiro” das Profecias a seguinte data e parêntese: “2198 [Império]” (sic).

Mas se o leitor amigo, como eu, não tem calçado para correr tais longes, já está confuso com tantas datas e bem entende que anos são desenganos, deixemos tudo isso para numerólogos cabalistas e astrólogos. Vamos com o Poeta por outro caminho. Vimos a intencionada “primeira poesia”. Vamos agora ao (re)verso dos caminhos medidos à luz de estrelas humanamente observáveis. É o último que ele escreveu, numa voz peregrina quem se achou e despede das “terras onde eu nasci”; uma voz de confissão humilde de menino prestes (29-11-1935) a embarcar sozinho para a descomedida Aventura:

« I know not what tomorrow will bring. »



[ Fica uma imagem popular em lugar da de Santo António “que se venera na Egreja de Nª Senhora dos Martyres”, imagem “conservada entre os objectos pessoais” do Poeta. O leitor interessado pode vê-la na p. 41 da Fotobiografia feita por D. Maria José de Lancastre. A propósito, é lembrar duas coisas: a tradição familiar corrente entre os Pessoas de laços genealógicos com a família do Santo; e que o Poeta, nos seus dois últimos anos de vida entre nós como pessoa Fernando António, produziu mais de duas centenas de quadras “ao gosto popular” e, a 9 de Junho de 1935, um poema dedicado ao santo popular (.... Ia eu dizendo, Santo António / Que tu és o meu santo sem o ser .... ), até há pouco inédito. Agora, com licença do leitor, volto-me para a memória doutro António… - aquele “com quem nascemos todos”, porque todos e cada um estamos cada vez mais sós. ]

quinta-feira, junho 12, 2008

"The Snow Party", de Derek Mahon




Como acontece regularmente, ontem voltei à leitura dos haiku* de Basho. Disse "voltei à leitura", diria melhor voltei à contemplação dos haiku do grande mestre japonês. No meu livrinho, uma versão inglesa editada pela Penguin, os poemas comprimem-se elegantemente no centro da página em branco para depois explodirem em sentidos, sensações e deslumbramento.

Recordo apenas uma composição:


If I had the talent,
I would sing
like cherry petals falling.


Convoco para este post um lindíssimo poema do irlandês Derek Mahon em que Basho é uma personagem central. Deslumbremo-nos.



THE SNOW PARTY


Basho, coming
To the city of Nagoya,
Is asked to a snow party.

There is a tinkling of china
And tea into china;
There are introductions.

Then everyone
Crowds to the window
To watch the falling snow.

Snow is falling on Nagoya
And farther south
On the tiles of Kyoto.

Eastward, beyond Irago,
It is falling
Like leaves on the cold sea.

Elsewhere they are burning
Witches and heretics
In the boiling squares,

Thousands have died since dawn
In the service
Of barbarous kings;

But there is silence
In the houses of Nagoya
And the hills of Ise.

Derek Mahon


(* Vários especialistas indicam que haikai é a forma plural de haiku. Não a uso aqui porque as fontes que consultei não são unânimimes quanto à utilização e ao significado do termo haikai.)

terça-feira, junho 10, 2008

DIA DE CAMÕES


“Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989”

[ Ao receber o Prémio Camões, na primeira vez que foi atribuído. ]

« Uma vida longa dá para tudo. Para se nascer obscuramente em Trás-os-Montes, para mourejar, adolescente, em terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais países africanos lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras, tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos. Época cruel e paradoxal, em que se vai à Lua e se fomenta o ódio nos cinco continentes, se queimam os produtos excedentários e se deixa morrer de fome populações inteiras, se oprimem, directa ou indirectamente, estados que se promete ajudar, se negam as divindades que se cultuam, se faz da moral um disfarce e do cinismo virtude. Mas ninguém escolhe a ocasião da sua existência, e todos temos que nos cumprir na que nos coube em sorte, que, seja qual for, é sempre um desafio, no bom e no mau, às forças e fraquezas de cada um. E eu procurei cumprir-me na minha, lutando, trabalhando, porfiando. Não foi tarefa fácil. Os dons eram escassos, a saúde traiçoeira, o ambiente irrespirável, e os meus propósitos temerários. Só que morava dentro de mim uma vontade férrea, e o instinto e a razão mandavam-me seguir. Queria ser no mundo, como em letra redonda o declarei, um homem, um artista e um revolucionário. E tentei sê-lo, contra todos e contra tudo. (…)

« Amar Portugal, amei-o eu sempre, e procurei compreendê-lo de todas as maneiras, inventariando-lhe incansavelmente o corpo e a alma, devoto e defensor da sua identidade. Amar o Brasil, amei-o eu sempre, foi o meu segundo berço, sinto-o na memória, trago-o no pensamento, e orgulho-me dele como qualquer dos seus filhos. Amar Camões, amei-o eu sempre, e é ele o meu paradigma do intelectual apegado ao ninho e solto, desassossegado, errante, aventureiro daquém e dalém mar, ávido de ver e de saber, figuração perfeita da universalidade mental enraizada. Mas era preciso mais. Há horas em que só a desmesura é legítima e solvente. Sem asas para atingir esses cumes, e obrigado por uma decisão inânime e generosa, limito-me a receber a distinção com que fui honrado em nome de todos os meus companheiros de pena e de penas, que acreditam no milagre duma portugalidade viva e promissora, com expressão lusíada, brasileira, angolana, moçambicana, timorense, macaense, goesa, e se obstinam, como escritores, em afirmá-la e prestigiá-la. Convencido e possuído dessa verdade estimulante e responsabilizadora, de que muito cedo tive a percepção, nunca escrevi um texto que me não sentisse ao mesmo tempo dentro e fora do torrão nativo. É que sabia, por experiência de antigo emigrante, que manejava uma língua dúctil, maleável, de virtualidades infindas, que em todas as latitudes e longitudes se dá bem, que logo nos primórdios foi capaz de dizer o que disse na Carta de Pêro Vaz de caminha, e que mais tarde, a pintar a mesma realidade tropical, serviu igualmente o barroquismo iluminado do Padre António Vieira e o sertanejo de Guimarães Rosa. Moldável, proteica, subtil, nenhuma clausura gramatical a detém, nenhum purismo lhe tolhe a aptidão planetária. E é esse polimorfismo, que reflecte o próprio povo que a segregou, que faz dela um dos grandes instrumentos de comunicação do mundo. Quem conhecer o dia de amanhã, há-de presenciar o prodígio dum imenso espaço humano multirracial, a entender-se nas mesmas palavras de Gil Vicente e de Machado de Assis, e a produzir com elas obras imprevisíveis e certamente imorredouras, numa fecunda congregação de diversidades. Realizações que serão uma afirmação cultural já não injustamente marginalizada, mas acolhida e admirada no seio das maiores. O coro polifónico das nações terá mais uma voz singular e poderosa a enriquecê-lo, na evidência das múltiplas facetas da sua inventiva e originalidade. Modulações até agora apenas condescendentemente referidas, serão consideradas de presença obrigatória na harmonia da partitura. (…)»

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

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“Amar Camões, amei-o eu…” E outro que o amou, e tanto que se lhe pôde comparar, ao menos no “cotejo dos Fados” adversos, - foi Bocage. O poema que este escolheu do Épico para recitar certa vez ao viajante William Beckford é, segundo afirmou ao inglês, “este soneto que fez de mim o que eu sou”:

A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos castanheiros;
O manso caminhar destes ribeiros
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.


[ Este soneto é dos poucos em que Camões se dirige à mulher amada na segunda pessoa do singular. Apetece associá-lo àquele, mais conhecido, em que evoca essa “alma minha gentil, que te partiste”: “ Não te esqueças daquele amor ardente / Que já nos olhos meus tão puro viste.” Ou essoutro em que fala da “cara minha inimiga” cuja “peregrina fermosura” “sempre viva em minha alma te acharão”. Ou seja a “fresca serra” a do Buçaco ou a de Sintra, por mim me praz associá-los todos a sua prima Isabel Tavares, filha de Pedro Vaz de Vila Franca… ]

domingo, junho 08, 2008

Jornal 'Pontos de Vista'



O jornal escolar Pontos de Vista já está on-line. Trata-se da publicação que dá conta das principais actividades e de trabalhos dos alunos da Escola Secundária / 3º Ciclo de Azambuja. Aí se apresentam notícias, textos criativos dos alunos, recensões a livros, uma entrevista, etc. Como se diz no editorial, este anuário é feito por alunos e para os alunos.

O jornal electrónico só existe graças à dedicação e ao espírito de militância da Professora Rita Martins, que empenhadamente construiu a elegante página e pacientemente foi carregando textos, imagens e programas. Tudo isto para lá das suas já pesadas 35 horas semanais de trabalho.

sexta-feira, junho 06, 2008

DEMÓCRITO: FRAGMENTOS DE ÉTICA



“Não será de facto o riso, o grande riso de Demócrito, a resposta adequada?” – pergunta-se Georges Minois na página 11 da sua Introdução às cerca de 700 que dedicou à História do Riso e do Escárnio, há poucos meses lançada no mercado português. Sugeri aqui há dias que tanto pode ser o riso como o choro. Pode ser um riso estranho, muito diferente daquele pintado por Coypel: como o que Sócrates terá lançado em rosto dos 500 juízes, quando lhes requeria por justa uma boa pensão de velhice em vez da morte; ou como o que o marmóreo rosto de Zeus soltou e amedrontou aos que vinham deslocar de Atenas a sua estátua de Fídias para Roma, às ordens de Calígula. Estes aprenderam à sua custa que não era retórica aquele verso de Homero: sorrindo com uma expressão terrível.

Lembrada que foi a jovem trácia que troçou criticamente do velho Tales de Mileto, lembro hoje as hesitações de alguma historiografia antiga quanto à terra natal de Demócrito: ou Abdera, ou… precisamente a mesma cidade de Mileto. Esta associação entre ambos é significativa. O grande escopo dos “físicos” milésios de há 2.500 anos foi o de, mais que descrever o mundo, tentar compreender a sua natureza (é a origem histórica das nossas chamadas “ciências da natureza”) e o processo da sua temporal formação. Ora acontece que a teoria atomista de Demócrito parecia dar uma solução simples, muito económica e também completa a essas questões. Teríamos duas suposições básicas apenas: um espaço vazio infinito (ou em expansão infinita); quantidades de matéria mínima indivisível – os átomos -, em número infinito, perpetuamente móveis nesse espaço vazio. Do encontro aleatório dos átomos simples geram-se os corpos compostos e, necessariamente, as qualidades específicas de cada agregado, sobrevenientes à quantidade, forma, disposição e demais relações entre os átomos constituintes. Todos os corpos, animados ou inanimados, terrestres ou celestes, homens ou deuses são compostos diferentes de diferentes átomos diferentemente ligados entre si. Compostos instáveis, no entanto: com o tempo, tudo o que se agregou se desagregará, assim para qualquer corpo como para todo o cosmos. Embora pudessem durar mais do que os homens, nem os deuses seriam imortais. Pelo acaso, outros mundos poderiam vir a formar-se, ou não. Tínhamos então uma explicação consistente e integral do cosmos, e tinha Demócrito motivos para hastear o riso, um riso triunfante sobre competidoras teorias? Havia um pequeno problema: minguem via os átomos. Tivemos de esperar até aos princípios do século passado para os vermos (indirectamente) na câmara de nevoeiro de Wilson. Mas havia um problema maior para os gregos: a física atomista destruía a radicada crença geral na diferença material substantiva entre a Terra e os corpos celestes, considerados estes inalteráveis, “incorruptíveis”, indestrutíveis. Esta crença, por sua vez, associava-se a outra: a da eternidade da natureza do cosmos como totalidade ordenada e regrada por uma Lei ou Logos, o que tornava inaceitável a desagregação total, sem garantia de recomposição. Mas isto implicava introduzir uma Necessidade ou Destino onde os atomistas viam apenas acaso e vazio…

Foi Demócrito o mais prolífico dos filósofos chamados “pré-socráticos” e, talvez por isso, aquele de quem nos chegaram mais fragmentos das muitas obras que escreveu. Motivo, este, para ele ao menos se sorrir? Noventa por cento das obras que terá escrito versavam assuntos de cosmologia, a tal “física”; porém, a tradição trocou-lhe as voltas e o sorriso: cerca de noventa por cento dos 297 fragmentos conservados tratam de matéria axiológica, ética, política e assuntos vários. Uma das obras de ética que escreveu intitula-se Peri EuthymiesSobre a Boa Disposição -, mas não se sabe quais dos fragmentos remanescentes ao certo lhe pertencem. Sobretudo, digo eu, o mais difícil de saber é por que razão alguém deveria seriamente preocupar-se em escrever obras sobre o que é o “bem” ou o “mal”, o que vale ou não vale a pena, se para todos o fim é o mesmo: dissolução e vazio. Terá sido por isto que até um filósofo tão afim como Epicuro lhe chamou “lerócrito”, - tagarela?... Seja como for, a tradição achou-lhe graça; mas, como o leitor verá, fixou fragmentos que, na sua maior parte, não reflectem senão a velha sabedoria proverbial do senso comum dos povos. (Muito notáveis excepções, entre outras, são os 31 e 32: os “designed babies” já aí estão. Mas senso comum não é sinónimo de bom senso…) - A velha sabedoria proverbial é a velha sabida que já tínhamos visto acompanhar o grande sábio Tales de Mileto, e que ainda pode dar muito boas lições a mim e ao leitor.


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[ Nos seguintes, os números entre parênteses referem a numeração dos fragmentos na edição académica de referência, de Diels-Kranz. A tradução portuguesa é do brasileiro Gerd Bornheim, feita directamente do grego. ]


1. «Quem quiser viver tranquilamente evite a agitação na vida particular ou na vida pública; o que fizer, faça-o dentro dos limites das próprias forças e da sua natureza; e cuide de a boa fortuna o não tentar à desmesura, resguardando-se de ser dominado por ela: uma plenitude comedida é mais segura. » (3)

2. «O prazer e a dor são os limites do vantajoso e do desvantajoso.» (4)

3. «O melhor para o homem é viver com o máximo de alegria e o mínimo de prazer: é o que se consegue quando não se procura o prazer em bens perecíveis.» (189)

4. «Entre os prazeres, o mais raro traz a maior alegria.» (232)

5. «Para todos os homens o bem e a verdade são o mesmo; mas o agradável agrada a uns, desagrada a outros.» (69)

6. «A boa qualidade do animal está no vigor do corpo; a do homem na excelência do carácter.» (57)

7. «É o carácter equilibrado que faz a vida equilibrada.» (61)

8. «Uma vida sem equilíbrio, desprovida de entendimento e de respeito pelo sagrado não é uma vida má, mas um morrer lentamente.» (160)

9. «Desejos sem medida são para crianças, não para homens.» (70)

10. «O desejo é bom quando aspira às coisas belas, sem excesso.» (73)

11. «Transgredir a justa medida pode fazer da mais agradável a coisa mais desagradável.» (233)

12. «Nem o corpo nem o dinheiro fazem o homem feliz; sim a rectidão e a prudência.» (40)

13. «Sábio é quem não se aflige com o que lhe falta e se alegre com o que possui.» (231)

14. «Deve reconhecer-se que a vida humana é frágil, de curta duração e assolada por muitos flagelos e dificuldades; assim, o homem preocupar-se-á em possuir moderadamente e medir-se-á a miséria conforme a necessidade.» (285)

15. «Evita o mal, não por temor mas por dever.» (41)

16. «Dever é dizer a verdade e não perder-se com conversas.» (225)

17. «Falar com destemor e franqueza é próprio dum carácter livre; o perigo está em não conhecer a ocasião.» (226)

18. «Grandeza é cumprir o dever mesmo na desgraça.» (42)

19. «Quem comete a injustiça é mais desgraçado do que quem a sofre.» (45)

20. «Os insensatos vêm à razão pela desgraça.» (54)

21. «Insensatos são os que detestam a vida, mas vivem por temor da morte.» (199)

22. «A ignorância do melhor é a origem dos nossos erros.» (83)

23. «A amizade de um só homem sábio é melhor do que a de muitos homens sem juízo.» (98)

24. «Encontrar na felicidade um amigo é fácil; na desgraça, muito difícil.» (106)

25. «Ser dominado por uma mulher é para um homem a pior das ofensas.» (111)

26. «É de homem triunfar de não só de seus inimigos, também dos prazeres; mas alguns são senhores de cidades e escravos das mulheres.» (214)

27. «A virilidade torna pequenos os golpes do destino.» (213)

28. «Somente com esforço se aprendem no estudo as coisas nobres; as que o não são colhem-se por si e sem esforço.» (182)

29. «A educação é um ornamento para os felizes e um refúgio na desgraça.» (180)

30. «Às vezes encontra-se entendimento nos jovens e falta dele nos velhos; pois não é o tempo que o dá mas uma boa educação desde a infância e o dom da natureza.» (183)

31. «A procriação não me parece necessária, pois vejo na posse dos filhos muitos perigos e muita aflição; pouca satisfação, e esta em mínima e fraca medida.» (276)

32. «Quem tiver necessidade de ter um filho, parece-me que faz melhor adoptando um de um amigo. Terá então um filho tal como o deseja. Pois pode escolhê-lo assim como o quer, pelas suas qualidades e disposições naturais. Um filho próprio, ao contrário, traz consigo muitos perigos, pois se deve tomá-lo assim como o fez a natureza.» (277)

33. «Os deveres para com o interesse público devem ser considerados como os maiores, e devem ser bem executados; não se faça ofensa à equidade, nem se atribua força contra o bem colectivo. Pois uma cidade bem administrada é a maior protecção, e nela tudo se encontra; se for sadia, tudo é sadio; se não, tudo com ela perece.» (252)

34. «A pobreza em uma democracia é melhor do que a chamada felicidade no paço dos príncipes, assim como a liberdade é melhor do que a escravidão.» (251)

35. «Para um homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma virtuosa é o mundo.» (247)

quinta-feira, junho 05, 2008

Projecto Inovar Tejo ganha prémio no concurso Cidades Criativas

O projecto Inovar Tejo, concebido e dinamizado por alunos da turma 12º C da Escola Secundária de Azambuja, foi distinguido com o Primeiro Prémio na categoria Arte, Ambiente e Sociedade do concurso Cidades Criativas, organizado pela Universidade de Aveiro. O resultado do concurso foi anunciado no passado dia 5 de Junho, em Aveiro, onde os membros da equipa tiveram a oportunidade de receber, in loco, o galardão. Além deste Primeiro Prémio, o projecto foi ainda distinguido com uma Menção Honrosa na categoria Melhor Blogue.


Os objectivos centrais da iniciativa Inovar Tejo passaram por estudar o espaço urbano de Azambuja e propor intervenções em áreas públicas do concelho bem como formas de dinamizar a vila. Os membros da equipa apresentaram no seu blogue, na imprensa local e em sessões públicas as suas ideias de alterações das áreas urbanas e rurais e de actividades que contribuiriam para uma melhoria nas condições de vida dos azambujenses e para tornar a nossa vila num lugar mais harmonioso. Entre outras propostas, saliente-se a maior colaboração entre as entidades e instituições locais, a dinamização de áreas actualmente subvalorizadas e a organização de iniciativas culturais e desportivas. (No blogue do projecto encontra-se a súmula das reflexões e das sugestões avançadas.) O trabalho foi desenvolvido ao longo do corrente ano lectivo, centralmente nas aulas de Área de Projecto, tendo a Professora Fátima Costa coordenado as actividades.

"Coimbra, 5 de Junho de 1953"

[Falando sobre o próprio Diário…]

« (…) Pessoalmente, apenas lhe encontro uma significação positiva: testemunhar passo a passo o que foi a crucificação espiritual dum homem insubmisso, que nem no comportamento íntimo nem no público se rendeu a uma época incapaz de compreender ou tolerar a mais inofensiva opinião tresmalhada (…). »

Miguel Torga, Diário, vol VII.

quarta-feira, junho 04, 2008

"Coimbra, 4 de Junho de 1992"

« Conferência internacional do Rio de Janeiro para defesa do ambiente físico. Do metafísico, já ninguém cuida. E, do outro, mais valia que os delegados, em vez de discursos sujos, lavassem a hipocrisia, nas águas ainda lustrais de Guanabara. O mundo está irremediavelmente perdido, porque é incorrigível a voracidade capitalista e a nossa obstinação consumista. Queremos, queremos, queremos. E os abnegados senhores do progresso, fabricam, fabricam. (…) Contemporâneos passivos de uma civilização técnica e industrial, que nos serve o necessário poluído e o supérfluo esterilizado, já nem sequer nos indignamos de a ver acabar assim, pletórica e podre. Sornamente, vamos vegetando intoxicados, na esperança secreta de que o dilúvio não acontecerá na nossa vida, e, se acontecer, haverá sempre na Arca de salvação lugar para mais um. »

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.


[ Exactamente um ano depois, não desistia, ele, de cuidar “do metafísico”, aliás não sem ressonâncias “do outro”…]


"Coimbra, 4 de Junho de 1993"

« O que me vai valendo e dando coragem para continuar, é ter a certeza de que os impulsos que levam a cada gesto que faço são ainda puros como na primeira hora. Se não fico contente com os actos que pratico, consola-me a convicção de que os motivou uma pulcritude original. Do mal, o menos. Ao fim e ao cabo, a dignidade da vida reduz-se a um propósito limpo cumprido como Deus é servido. Não há existência quimicamente pura. Nem a dos santos. É da própria natureza que o tempo e as circunstâncias corrompam e degradem o que nela vem à luz imaculado em todas as natividades.»

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

domingo, junho 01, 2008

“Coimbra, 1 de Junho de 1952"

« (…) Mas a verdadeira cultura, sem implicar renúncia individual ou falta de personalidade é, fundamentalmente, uma ampla confraternização de experiências humanas.

Miguel Torga, Diário, vol. VI.