sábado, agosto 30, 2008

O MELODINO



« Vemos que dos nossos insignes como sábios poetas portugueses, tem feito já o tempo tão pouca conta, que mal entre nós duram ou se conhecem seus nomes: dignos certo de prevalecer contra a guerra dos dias. Não só os ignoram de todo os estrangeiros, nós próprios os desconhecemos. Réu é nosso descuido de sua infâmia. A malícia do tempo se escusará com a nossa malícia. »

Melo digno era de lembrança e aplauso unânime por parte de castelhanos e portugueses, se pôde ser julgado “el hombre de más ingenio que produjo la Península Ibérica en el siglo XVII, a excepción de Quevedo” – pelo exigente crítico que foi don Marcelino Menéndez y Pelayo. E logo até por motivos de nascimento – 1608 -, sendo D. Francisco Manuel de Melo filho de portugueses pelo pai e de castelhanos pela mãe. Mas foi também um consumado bilingue, na tradição dos nossos quinhentistas, sem deixar de ser o cosmopolita europeu que tanto se podia encontrar no comando militar duma hoste, nos campos da Flandres ou da Catalunha, como a conferenciar com sábios na universidade de Lovaina ou a tratar com os príncipes nas cortes de Inglaterra, França e Itália.

Estava de facto talhado para grandes feitos, este que aos 18 anos de idade já tinha escrito uma Concordância Matemática das Antigas e Modernas Hipóteses e, embarcado na esquadra que guardava a nossa linha costeira, de tal maneira se houve contra os piratas que mereceu ser armado cavaleiro pelo capitão do seu navio – D. Manuel de Sousa Coutinho (sim, o mesmo que viria a ser Frei Luís de Sousa). Não foi o menor dos seus feitos o ter sabido aproveitar os 11 anos de preso e 3 de degredado, numa relativamente curta vida de 58 anos, para compor uma copiosíssima obra literária, infelizmente na maior parte perdida ou ainda inédita. Como ele mesmo disse: “Não perdi tempo que não aproveitasse neste honesto lavor da escritura.” Nós é que por infâmia nossa o perdemos e por malícia o não aproveitámos. E de todo o não merecia, já pelo valor intrínseco de tanto que escreveu quem é um dos maiores artistas da nossa prosa, já em paga do erudito generoso que, membro da selecta Academia dos Generosos, foi o primeiro a trabalhar numa Biblioteca Lusitana (“um Catálogo de todos os escritores deste Reino, em qualquer ciência, arte, faculdade ou disciplina”), só no século seguinte levada a efeito pelo padre Diogo Barbosa Machado.

Foi D. Francisco Manuel, como diz António Sérgio, “um homem do mundo, aristocrata e artista que frequentou cortes, exércitos, armadas, ambientes populares, academias, que viajou e que tratou com todas as classes, que soube lidar com todos os homens e interessar-se por todas as coisas, que logrou transmitir-nos com pitoresco a sua variadíssima experiência, e que ao pé do ditame de um filósofo nos alega o de um recoveiro, ao lado da sentença de um monarca nos apresenta os ditos de um plebeu.” E por isso que nesse “homem do mundo” a pletórica experiência das diversíssimas circunstâncias, felizes ou infelizes, da vida que lhe coube viver não lhe entibiou nem entediou a responsabilidade de reflectir para si e com os outros sobre como melhormente viver, - então pode-se dizer, com o mesmo Sérgio, que ele “é sempre, essencialmente, um moralista”. Um moralista que, em duas palavras, sendo “homem do mundo”, soube ensinar-nos com o próprio exemplo a vencer o mundo. Dou já a seguir breve prova disto, guardando outra mais dilatada e definitiva para outro dia. É uma carta a D. João da Gama, em que o nosso autor, experimentando pela primeira vez a prisão (durante cerca de um ano, em 1637-38, após os motins populares de Évora contra o domínio castelhano) agradece umas maçãs que aquele enviara de presente.


« Amigo: Este achaque é já velho nas maçãs: serem fruta de culpa e de discórdia; mas estoutro de esquecimento, de que vós as culpais, nunca ouvi que até hoje se lhe descobrisse. Pelo menos as que me mandastes livres estão desse perigo, porque são tais que eu me lembrarei sempre delas e de vós, Senhor, ainda que para mais não seja que para vos pedir outras. De haver faltado em vo-las agradecer tem culpa o portador, que se voltou tão depressa como se mas vira estar contando. Mas, pois elas foram sem conto, porque eu as não contei, sejam também sem conto as graças que eu vos dê por elas; dizei muito embora que eu vo-las pago com graças.

O licenciado N. cuidou que vos lisonjeava em vos convidar do seu engano; que, entre enganos e lisonjas, não há parede em meio. Mal me podia ver no coche, se não saí de casa; salvo se, para ser mais mofino, ando em duas figuras, porque uma só não pode dar aviamento a tanta desgraça.

Agora me mandam crer me querem soltar hoje. O mesmo me prometeram a semana passada. Já me não entendo com palavras de Príncipes. Pode ser que com a semana se passasse a memória da promessa. Nos grandes até as faltas são venturosas, porque nem se lhes provam nem se lhes emendam. Donde vem haver tão poucos que se emendem, se acaso têm de que emendar-se. Desta sorte me têm aqui. Deviam de querer dar-me este martírio da esperança, vendo que ao da desesperação eu me não rendia. Este é o meu estado; o meu desejo ver-vos e servir-vos, e que vos guarde Deus, amigo e Senhor, como a todos nos importa.

Castelo, 16 de Novembro, 1638. »


Ao que dizem abalizados críticos, não prendaram com muitas graças ao nosso poeta Melodino as “musas afáveis” (como ele as trata, em carta ao citado Quevedo). Assim terá sido, que eu (não por surdez) quase nada inda ouvi de como ele tocou a “tuba de Euterpe” ou a “sanfonha [sic] de Calíope”. Sei que era capaz de escrever poemas de quilate antológico como este, com que termino e aqui deixo fiado ao gosto do leitor.


Soneto LIX

ANTES DA CONFISSÃO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto lugar ou tempo a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando?

Se cuidando, Senhor, falando, obrando,
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza.
Donde vou? Donde venho? Donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota, a ser medida
Com o largo mar da tua Graça imensa?