quinta-feira, maio 15, 2008

O RISO DE DEMÓCRITO


A tradição literária conservou e tem cultivado a imagem dum Demócrito risonho, contra a cotieira e geral gravitas típica dos filósofos. Por gracioso desenfado, convido o leitor a empreendermos um pouco nos motivos da curiosa originalidade. E nada mais é preciso para termos à vista e nos louvarmos de descobrir um ponto em que todos os filósofos estão de acordo: o riso de Demócrito não será o mais conspícuo e premente dos problemas filosóficos. - Todos, mesmo todos, de acordo? Notável descoberta! Fortes e confiantes dela, avancemos a enfrentar o problema.

Julgo que podemos desde já excluir a hipótese de Demócrito se ter ficado a rir por termos deixado aqui, há uns meses, o grande sábio Tales de Mileto dentro dum poço, embora em muito boa companhia…

Mas dá-se a coincidência engraçada de a moçoila vivaça e escarninha, que passou a perna ao sábio milesiano, ser precisamente da mesma Trácia onde nasceu Demócrito, na cidade portuária de Abdera. Será então que os abderitas eram gente bem disposta, de riso fácil? Pode ser. Como se verá, o nosso Demócrito dava uma grande importância à “natureza” dos indivíduos (aquilo a que no antigo português popularmente se dizia “nação”: as naturais propensões inatas), pelo menos tanta como à “educação”. Acontece que, ao longo da longeva vida do filósofo, não temos notícia dalguma gargalhada notável dele que tivesse ouvido a História. Foi só no ocaso da vida, já perto dos cem anos de idade, que sucedeu o seguinte. Regressado à sua cidade, tinha ele por hábito e gosto ir sentar-se no cais, observando a chegada e partida dos barcos, o bulício das cargas e descargas, o afanoso fluxo e refluxo do mar de gente, mimando o ritmo das marés do próprio mar. Ora, sempre que lá ia, o Demócrito começava a rir, e ria-se tal e tanto que as sacudidas gargalhadas não raro o faziam tombar do banco. Era como o “riso inextinguível” que dominou os Olímpicos quando viram o coxo Hefesto entrar de serviço ao divino simpósio com o krater da ambrósia, e ecoou em Homero. (Diga-se de passagem que a vingança de Hefesto foi de uma vulcânica magnanimidade: na vez seguinte, em vez da ambrósia brindou-os com um certo vinho fino, que desbancou os comparsas do Olimpo e os fez cair de gozo nas nossas terras do Douro…) Enfim, ao nosso filósofo só conseguiam estancar-lhe o riso quando virava costas ao porto e o punham no caminho de casa. A ninguém confessava o quê e o porquê da repetida hilaridade.

Estranhando o caso e acaso a saúde mental do velho, os solícitos concidadãos convidaram o grande médico Hipócrates para vir consultar o filósofo. Chegou o sábio, e veio acompanhado duma jovem criada, muito elegante e vistosa, a quem o Demócrito saudava sempre com uma grande vénia e muito boa sombra: - “Ora tenha muito bons dias, sua moça!” E para se sair da vénia pretextava sempre grandes dores nas costas... para se sair a moça com enfermeira mão gentil e forte a endireitá-lo. Porém, quando se sentava no tal banco, não havia outras vistas que o distraíssem da gozada vista do movimento portuário, e lá lhe voltavam as cargas de riso e descargas de gargalhada. O grande Hipócrates, a princípio, chegou a ficar seriamente preocupado; mas, depois de se entrevistar a sós noutro sítio com o grande atomista, desfez-se de cuidados, e tão encantado ficou que proclamava nunca ter ouvido ninguém tão sábio. Ainda não ouvira tudo. Na manhã das despedidas, quando os dois vão buscar o velho, Demócrito, contra o costume, cumprimentou primeiro o médico; depois, voltando-se para a criada, negou-lhe a vénia e, olhando-a com senho carregado de gravitas filosófica disse-lhe: -“Ora teve muito boa noite, minha senhora!...” A donzela do dia anterior, corou. O sábio Hipócrates é que ficou maravilhado, queria saber logo por que sinais, de que sintomas o olhar do filósofo tinha visto o imperceptível ao médico. Não o sabemos nós. A musa da História, por menos curiosa ou mais envergonhada, só nos comunicou as causas do riso em geral. Disse-as ao célebre Galeno, e deste as aprendeu, muitos séculos mais tarde, o não menos célebre monsieur Des Cartes, que no-las contou assim no art. 124 do seu tratado sobre As Paixões da Alma :

« O riso tem como causa o sangue que, vindo da cavidade direita do coração pela via arterial e enchendo súbito e repetidas vezes os pulmões, obriga o ar que eles encerram a sair com impetuosidade pela laringe, provocando sons inarticulados e vibrantes; e tanto os pulmões a encherem-se como o ar ao sair excitam todos os músculos do diafragma, do peito e da garganta, fazendo desse modo mover os do rosto que com eles têm qualquer conexão. E é apenas esta acção do rosto com esses sons inarticulados e vibrantes que constituem o riso. » Isto apenas. Desvalorizou a tradição medieval que, pegando em Avicena, dava também muita importância ao baço: à dilatação do baço e à “saída impetuosa” do ar para as partes inferiores do corpo, com sacudidos efeitos no estômago e indesejáveis pressões sobre os gases intestinais, forçados a um súbito escape…

Merece também reparo o que Descartes diz logo no seguinte: que as grandes alegrias não provocam o riso, apenas as menores carecidas de misturar-se com sentimentos de admiração ou depreciação para com alguém ou alguma coisa. No caso de Demócrito, parece conspiravam ambos os sentimentos. E a causa destes, como dos mais sentimentos, qual era? O francês tem uma resposta “clara e evidente” para tudo: são os “espíritos animais”, que constituem “as mais vivas e subtis partes do sangue” que entra no cérebro e afecta as diferentes partes deste. Os “espíritos” não são fantasmas, sim “corpos muito pequenos e que se movem muito depressa, lembrando as partes da chama que sai dum facho”. Com tais “corpos muito pequenos”, Descartes não andava longe dos átomos do filósofo grego. Quanto a nós, depois de tantas causas, não vamos mais longe da razão, que parece seria esta: o velho ria-se a bom rir de se darem os humanos uma tão grande carga trabalhos e perigos no mar para descarregarem na terra tanta carga desnecessária e mesquinha.

Se o leitor concordar comigo que esta explicação apócrifa e banal não é razão suficiente, ou é tão boa para rir como para chorar, buscaremos outra melhor qualquer dia.


[ O quadro de Charles-Antoine Coypel (1694-1752) representa Demócrito a rir com ar de pintor, ou o pintor Coypel a rir com ar demócrito; ou ambos a rirem de apanhar na Rede um postal posted by Pedro Platagidoro, um tal que se não teme de arriscar o ridículo certo de enfrentar aqui tão magnos problemas.]